O Homem Vertical - A política por dentro.

quarta-feira, novembro 30, 2005

Política, Kombi e quatro caras armados (Parte 4)

Mas o pior ainda estava por vir. Muito pior.

Antes de continuar devo uma ressalva. No último post abordei temas muitos sérios de forma muito impulsiva. Pensei em fazer um longo comentário sobre política, cordialidade e pobreza no Brasil. Depois de pensar muito sobre isso resolvi não escrever nada. Isto é um blog, não é uma tese acadêmica. Basta dizer que me entendo como um radical defensor da democracia. Ao longo dos posts fatalmente vou pincelar aqui e acolá minhas convicções. Na verdade eu acho que vou descobrir minhas convicções aqui e acolá nesse site.

Política, Kombi e quatro caras armados (Parte 3)

Eu cuidava da comunicação do comitê, mas ajudava também o pessoal que fazia o trabalho de “rua”. Eles panfletavam, faziam visita porta-porta, penduravam faixas, preenchiam cadastros, distribuíam santinhos nas feiras; eram eles quem colocava o bloco na rua. Esqueci de mencionar, mas num comitê existe uma “sala de guerra”. É nessa sala onde as decisões são tomadas. Sempre tem um mapa enorme da região pendurado na parede. O mapa é dividido em sub regiões; no nosso caso o critério de divisão era geográfico. Lapa 1 era da Avenida Pompéia até a Rua Coriolano, Lapa 2 da avenida... até... As sub-regiões eram delimitadas com alfinetes e linhas de lã colorida, cada região tinha sua cor. No mapa constavam também pontos estratégicos (todos marcados com alfinetes coloridos, obedecendo a um padrão): colégios eleitorais, Universidades, shoppings, feiras-livres, pontos de táxi, delegacias de polícia, comitês políticos de outros candidatos e outros pontos menos relevantes. Com base nesse mapa o coordenador de logística fazia as ações de rua, que nós chamávamos de “passagem”.

Aí que eu pirava nas pessoas. A “equipe de panfletagem” era basicamente um grupo de meninas, geralmente quatro, um motorista e sua Kombi e um ou dois da coordenação. Geralmente eu ia junto. Achava importante motivar a equipe. Também não tinha muito que fazer no comitê, e às vezes aquela senhora do prédio vinha conversar, preferia estar na rua. Pegava o itinerário, o material que tinha que distribuir, colocava o pessoal na Kombi e zarpava.

O pessoal da panfletagem era muito simples, eram na sua maioria de regiões bem longe de Perdizes. Conseguiram o emprego através de uma rede de favores e contatos que passava pelo motorista da Kombi que conhecia sei lá quem da campanha que fazia um trabalho social lá na “quebrada” onde morava e que conhecia as meninas. Eu, na condição de coordenador, ficava na incomoda situação de motivar pessoas num trabalho mecânico e alienante. Tudo o que uma campanha política não devia ser. Política sempre foi para mim uma tarefa nobre, onde o fato de estar engajado rompia com a alienação e lançava o indivíduo para uma espécie de “criatividade”, onde a vida pulsava. Mas não era isso o que acontecia.

Nós tínhamos que passar em X ruas por dia. Formavam-se duas equipes, uma no lado par da rua, outra no ímpar. O motorista da Kombi, enquanto isso, colocava cartazes em postes nas esquinas. Chegávamos numa casa e tocávamos a campainha; “Boa tarde, nós somos do Comitê Político de Perdizes, e gostaríamos de chamar a senhora para participar de um evento que irá se realizar nesta quinta-feira no nosso comitê....” e assim ia. Passávamos nas casas no horário comercial. Geralmente quem estava em casa de tarde eram empregadas, aposentados ou malucos de toda a espécie. Dificilmente éramos bem recebidos. Uma vez uma mulher simplesmente soltou os cachorros, que correrram em disparada até a porta da rua. As vezes encontrávamos um tucano ou um malufista. Aí era a festa. Um xingava de lá, a gente retrucava daqui, mas era tudo vazio. Éramos atores numa enorme farsa. As meninas, coitadas, estavam defendendo o sustento, os outros estavam atacando com argumentos tão toscos que nem vou me atrever escrever. Foi aí meu primeiro choque democrático. Lá nas ruas da Lapa 1 entendi o que era, pra valer, democracia representativa num país ridiculamente pobre e cordial.

O fato é: não existe democracia no Brasil. De um lado a população é tão pobre que você não precisa nem comprar seus votos, isso seria até um avanço, o que você faz é simplesmente emprega-las. Esse papo de dar um pé de sapato para depois da eleição entregar o outro é coisa do passado, onde as pessoas eram empregadas mas ganhavam tão pouco que não conseguiam comprar o sapato. Hoje não. Não há emprego. De certa forma o que você faz é comprar uma rede de relacionamentos empregando suas lideranças numa campanha, e liberando para eles a possibilidade de empregar outras. Isso é mil vezes mais sedutor que o sapato ou a dentadura. Foi isso que eu vi em todas as outras campanhas, de todos os outros partidos. Você vê isso estampado na cara dos cabos eleitorais nos dias de votação. Olhe nos olhos destas pessoas, você irá ver o desespero, a decadência da nossa democracia.

Já os que xingavam, que no caso eram tucanos e malufistas, mas poderiam perfeitamente ser petistas, comunistas ou pefelistas, faziam um ataque medíocre, superficial. Era uma espécie de cordialidade, bacharelismo tal qual o Sérgio Buarque de Holanda constrói em Raízes do Brasil. A crítica que era dita em voz alta era sempre aquela sob medida para agradar os preconceitos alheios. Achar que não devemos votar na Marta porque ela é uma perua é reduzir sua crítica a parcela periférica, midiática. Nunca ouvi uma única crítica construída com discernimento ou esforço racional durante a campanha; mesmo em círculos mais educados como na PUC. Era sempre uma espécie de briga de “galeras”. Política, que é bom mesmo, nunca vi.
De vez em quando fazíamos reuniões com as equipes de rua no comitê. Estudávamos o orçamento municipal, os planos de governo dos candidatos e discutíamos as principais queixas da população que a gente visitava. Sempre nessas reuniões imperava um ar senhorial de quem falava, era praticamente um treinamento. Não havia ponderações nem delas, nem de quem “coordenava”. Discutir o que? Tínhamos um trabalho e tínhamos metas. Pensar não fazia parte do job description. Além disso fica difícil pensar depois que você fica ouvindo o dia inteiro no rádio da Kombi sucessos populares como Xandy, Cara Metade, sertanejos variados e Sandy e Júnior. Sentia quase nojo daquela situação. Mas eu ganhava para fazer aquilo. Talvez seja o mesmo que sentem os redatores de texto para tele-marketing.